Pandemia baralha as contas ao impacto do brexit nas empresas

Um ano depois da saída do Reino Unido da União Europeia, não há ainda perceção real do seu efeito nas empresas, dada a disrupção dos mercados provocada pela covid-19.

Categoria: Portugal

Um ano depois, parece que os receios das empresas portuguesas sobre os efeitos do brexit não tiveram razão de ser. Ou, então, são ainda os efeitos da pandemia sobre os mercados internacionais, e a desregulação que consigo trouxe, que baralham as contas e não ajudam a perceber bem o que são vendas perdidas por via da saída do Reino Unido da União Europeia e quais as que se prendem com o efeito covid. Dos vários setores, só o vinho e a cortiça parecem estar já aos níveis pré-pandemia. O que não admira, apesar de tudo, já que o vinho se manteve sempre de pé no acelerador mesmo com a covid-19.

Foi na véspera de Natal de 2020 que surgiu o histórico acordo entre Londres e Bruxelas para regular a futura relação comercial após a saída do Reino Unido da União Europeia, que se tornou efetiva a 31 de dezembro de 2020. E se o acordo trouxe grande tranquilidade quanto ao que se seguiria, as dificuldades criadas pela pandemia não permitem, ainda, tirar grandes ilações, ou pelo menos seguras, quanto ao futuro. Globalmente, Portugal exportou, nos primeiros dez meses do ano passado, bens no valor de 2747 milhões de euros para o Reino Unido, incluindo a Irlanda do Norte, um valor que está 10,2% acima do período homólogo, mas ainda 10,3% abaixo de janeiro a outubro de 2019. Ou seja, foram exportados menos 317 milhões de euros em 2021 do que em igual período de 2019.

Metal: novas barreiras

Só o Metal Portugal, a marca nos mercados internacionais da indústria metalúrgica e metalomecânica nacional, exportou quase 1006 milhões para o Reino Unido, o que representa um aumento de 17,7% face a 2020, mas fica ainda aquém dos 1153 milhões de 2019. Rafael Campos Pereira, vice-presidente da AIMMAP, admite que o brexit “fez renascer algumas barreiras que estavam apagadas há décadas”, com constrangimentos processuais e burocráticos aumentados numa altura em que as empresas já enfrentam “tantas dificuldades acrescidas” com os obstáculos resultantes da crise sanitária. A própria situação pandémica “também não permite ver na totalidade as consequências” do brexit, reconhece este responsável.
No entanto, Rafael Campos Pereira acredita que o brexit pode até ser uma oportunidade para as empresas do Metal Portugal, já que o Reino Unido constitui um mercado “de grande importância para o setor” e as empresas portuguesas “estão muito bem posicionadas no campeonato do valor acrescentado”, e poderão usufruir da “herança de uma relação de amizade e de cooperação de longa data entre as partes”.
Em termos globais, Rafael Campos Pereira defende que “é essencial” promover uma relação de “ampla cooperação” entre a União Europeia, e cada um dos seus Estados-membros, e o Reino Unido, “procurando minimizar o impacto e consequências de possíveis ações unilaterais”. A AIMMAP teme, ainda, que possa haver “algum desequilíbrio concorrencial” se não houver um alinhamento das leis ambientais, laborais, fiscais e sobre ajudas estatais, “particularmente numa altura em que a Europa alinha, por exemplo, por um caminho espartilhante e muito exigente no que respeitas às leis ambientais”.

Automóvel: bom mercado

Os componentes para a indústria automóvel é outro dos setores que tem no Reino Unido um mercado “muito importante”, mas que, no ano passado, caiu de 4.º para 5.º lugar no top de destinos das exportações nacionais. Em 2019, o setor exportou 717 milhões de euros, nos primeiros dez meses do ano, para este mercado, valor que em 2020 caiu para 472 milhões e, em 2021, para 360 milhões. Sem tecer grandes comentários à performance do setor ou às razões para tal, o secretário-geral da AFIA aplaude o facto de o Acordo de Comércio e Cooperação prever direitos aduaneiros nulos e contingentes pautais com isenção de direitos para todas as mercadorias que cumpram as regras de origem adequadas. “O Reino Unido continua a ser um mercado importante para os componentes automóveis fabricados em Portugal. É o 5.º país parceiro comercial da indústria de componentes automóveis portuguesa, com uma quota a rondar os 5% das exportações”, destaca Adão Ferreira. A verdade é que, em 2019, essa quota era de 8,8%.

Têxteis: demoras caras

Nos têxteis, o brexit trouxe “acima de tudo” constrangimentos em termos de procedimentos aduaneiros, aumentando o seu custo, morosidade e complexidade, garante a Associação Têxtil e Vestuário de Portugal (ATP), explicando que envios de encomendas que demoravam dois a três dias úteis demoram agora dez, ou, no caso do correio expresso, “muito usado no processo de prototipagem”, amostras que eram entregues em 24 horas, demoram agora três a quatro dias, “mesmo com o pagamento de taxa de urgência”.

“Na fase de prototipagem, poderemos estar a falar de sucessivos envios (entre o Reino Unido e Portugal) de amostras para correções e reajustes, e um processo que podia demorar uma semana pode agora demorar três a quatro semanas, com custos aduaneiros que podem facilmente chegar aos 500 euros, sem ainda estar fechada a encomenda”, explica a diretora-executiva da ATP, sublinhando que “esta situação põe em causa a competitividade das empresas portuguesas do setor têxtil e vestuário, para as quais o tempo e a capacidade de resposta rápida são fatores determinantes do sucesso”.

Ana Paula Dinis admite que estas situações originaram “alguns atritos” na relação comercial entre as partes, e que “poderão justificar” uma quebra nos negócios da moda. Os dados provisórios até setembro de 2021 mostram exportações de 292 milhões de euros, um decréscimo de 0,2% face a igual período de 2019. A questão é que, com exceção de Espanha, mercado que “já está em queda há alguns anos, fruto de uma alteração da política de aprovisionamento das principais cadeias espanholas”, o Reino Unido foi o único país do top 10 dos principais clientes da ITV a cair. “No nosso entender, devido ao brexit. Sabemos quanto perdemos, mas nunca saberemos quanto poderíamos ter ganho não fosse este novo enquadramento do relacionamento comercial entre a União Europeia e o Reino Unido”, frisa.

Calçado: covid pesou

No calçado, a Associação Portuguesa dos Industriais de Calçado, Componentes, Artigos de Pele e seus Sucedâneos (APICCAPS) admite que “não é fácil identificar os impactos específicos” do brexit na medida em que a pandemia teve um impacto “muito superior”. “A grande preocupação com o brexit tem a ver com a dinâmica da economia do Reino Unido que nos últimos anos deu alguns sinais de divergência face à zona euro e, em 2021, é esperado que já tenha crescido mais do que a zona euro. Veremos como correm os próximos anos”, diz o diretor de comunicação da associação, sublinhando que, “do ponto de vista económico, está por provar que o brexit foi um mau negócio para o Reino Unido”.

Paulo Gonçalves admite que “a grande perturbação” deu-se nas empresas que vendiam online para clientes no Reino Unido. “O facto de o acordo não prever nenhum procedimento específico para este tipo de vendas conduz a que os custos de desalfandegamento sejam muito relevantes e, na generalidade dos casos, acabam por levar as empresas a retirarem-se desse mercado”, sublinha. Por outro lado, este é um mercado que já vinha perdendo peso, na última década, nas exportações de calçado, embora continue a ser um destino “muito importante”. “Esperamos no futuro poder retomar os investimentos promocionais no mercado e retomar a rota de crescimento sustentado”, sublinha. O setor exportou para o Reino Unido calçado no valor de 84 milhões de euros no ano passado, entre janeiro e outubro, que comparam com os 96 milhões do período pré-pandemia e com os 75 milhões do ano anterior.

Vinhos: contra a corrente

Distinta de todos foi a performance dos vinhos, cujas exportações para o Reino Unido no ano passado totalizaram 77,7 milhões de euros, cinco milhões acima de 2020 e 14 milhões a mais do que em 2019, antes da pandemia. “A grande preocupação no início do ano era o câmbio, mas acabou por não ter impacto e as vendas tiveram uma evolução positiva”, sublinha a diretora-executiva da Associação de Vinhos e Espirituosas de Portugal. Sobre a escalada da burocracia, Ana Isabel Alves diz que “foi ultrapassada”, o “grande problema” é ao nível dos transportes e do aumento do seu custo, mas reconhece que “isso se deve mais à covid do que ao brexit”. Da parte das empresas tem havido a preocupação em não refletir os aumentos no preço final ao consumidor, mas a responsável acredita que “chegará a um ponto em que será inevitável”.
Quanto ao brexit propriamente dito, o setor do vinho admite que os maiores riscos advêm da alteração prevista, para 2023, na estrutura dos impostos sobre as bebidas alcoólicas que, tudo indica, passarão a ser tributadas em função do seu grau alcoólico. O que muito preocupa a Associação das Empresas de Vinho do Porto, um produto de elevado grau alcoólico. “É uma questão que ainda está em consulta pública no Reino Unido e temos alguma esperança que, sendo os vinhos fortificados altamente consumidos e apreciados, possa ainda vir a haver alguma alteração”, diz Isabel Marrana.

Cortiça: vendas em alta

Na cortiça, João Rui Ferreira, vice-presidente da APCOR, diz que o Reino Unido “tem vindo a consolidar o sexto lugar” nas exportações nacionais, posição que ocupa pelo terceiro ano consecutivo. “É um mercado relevante, onde duplicámos as nossas exportações nos últimos dez anos e para o qual continuamos a olhar com otimismo por via da preferência dos consumidores pela cortiça, seja no mundo vinícola, seja noutras aplicações”. No primeiro semestre de 2021, as exportações de cortiça para o Reino Unido estavam já nos 21 milhões, em linha com 2019, e 23,5% acima de 2020. O grande crescimento deu-se no terceiro trimestre, com as vendas a dispararem 40,3% face ao período homólogo para 12,2 milhões. Em 2019, foram exportados 11 milhões no mesmo período.